Passou por mim no corredor do comboio, com o carrinho ainda cheio, e disse: ‘Última oportunidade para refrescos…!’
De nariz enfiado num livro, em qualquer outro dia teria seguido, distante, mergulhada na minha mente agora constantemente ocupada. Mas, naquele momento, as suas palavras romperam o ar até mim e trouxeram-me um abismal rasgo de lucidez. Olhei-o por alguns segundos, procurando respostas. Notando o peso dos meus olhos, cruzou-os com os seus, sorriu casualmente, e continuou puxando o carrinho pelo corredor do comboio. Que arrepio.
Talvez o anjo da morte nos encontre assim, perdidos nos nossos afazeres e preocupações, e avise: ”Última oportunidade para refrescos…!’ Distraídos e seguros da nossa próxima oportunidade para nos refrescarmos, ignoramos o dissimulado aviso. E depois, aviso dado, vem enfim o abraço que nos derrama na calmaria da morte, um eterno mar – se de luz ou escuridão, não sei ainda.
Conquanto não saiba precisar quanto tempo haverá entre o aviso e o abraço, creio que o senhor do carrinho dos refrescos não fosse, desta vez, o meu anjo da morte. Vivo mais um dia para disfrutrar de refrescos. E, relembro agora que penso no assunto, tenho especial preferência para aqueles que me revigoram o espírito: um beijo, um bom livro, o Sol na minha pele salgada de mar, o conhecimento e o descobrimento, uma mesa repleta das almas que completam a minha, o meu amor…
Prestando atenção, encontraremos todos os dias mais uma razão para sermos gratos, mais uma motivação para exigirmos sermos felizes. Hoje, aproximou-me dos outros e de mim mesma o senhor dos refrescos, que sem saber me lembrou da inevitabilidade da morte e da efemeridade (e, portanto, da preciosidade) da vida.
Telefonei à minha avó.